Racismo no Brasil e a Impunidade Policial: Um Olhar Necessário

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O Brasil se autoproclama um país miscigenado, de pluralidade cultural e de convivência harmoniosa entre diferentes raças. No entanto, por trás dessa imagem existe uma realidade dura e inegável: o racismo estrutural. Esse racismo atravessa todas as esferas sociais — da educação à economia, do sistema judiciário às forças de segurança. Um dos aspectos mais graves e dolorosos dessa realidade é a violência racial praticada por agentes do Estado, especialmente pela polícia, que raramente é responsabilizada de forma efetiva. A impunidade, nesse contexto, é regra, não exceção.

O Racismo Estrutural Brasileiro

Para entender o racismo no Brasil, é fundamental compreender sua raiz histórica. A escravidão no país durou mais de 300 anos, sendo o Brasil o último país das Américas a abolir oficialmente a prática em 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Essa abolição tardia foi feita sem políticas de reparação, inserção social ou educação para a população negra recém-liberta. Na prática, os ex-escravizados foram abandonados à própria sorte, sem acesso a trabalho digno, terra, moradia ou cidadania plena.

O mito da democracia racial, popularizado no século XX, reforçou a ideia equivocada de que o racismo no Brasil seria “brando” ou “não violento”, mascarando as desigualdades profundas. Essa narrativa, além de falsa, ajudou a perpetuar uma lógica onde o racismo é menos reconhecido, e por isso, menos combatido.

Racismo e Violência Policial

A violência policial é uma das faces mais brutais do racismo no Brasil. Jovens negros são os principais alvos de abordagens violentas, prisões arbitrárias e execuções extrajudiciais. De acordo com o Atlas da Violência 2023, cerca de 77% das vítimas de homicídios no país são negras. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a letalidade policial atinge desproporcionalmente a população negra: em alguns estados, mais de 80% das pessoas mortas pela polícia são negras.

Essa violência não é acidental. Ela é fruto de uma construção histórica que associa a negritude ao perigo, ao crime e à marginalidade. Operações policiais em favelas e periferias, com uso desproporcional da força, são uma constante — frequentemente sem investigação ou punição adequada.

Impunidade: O Estado Que Não Puni

Um dos aspectos mais revoltantes da violência racial policial é a impunidade. Raramente agentes de segurança são responsabilizados por mortes ou abusos. Quando ocorrem investigações, estas são frequentemente conduzidas de forma superficial, com arquivamento dos casos ou absolvições baseadas na alegação de legítima defesa.

Diversos fatores contribuem para essa impunidade:

  • Legislação permissiva: O Código Penal brasileiro permite que policiais aleguem legítima defesa com ampla margem de interpretação, dificultando a responsabilização.
  • Investigação falha: Muitas vezes, as investigações são feitas pelas próprias corporações às quais os policiais pertencem, criando conflitos de interesse.
  • Preconceito institucional: Existe um viés racial nas decisões policiais, judiciais e midiáticas que tende a criminalizar a vítima negra e a proteger o agressor policial.
  • Falta de transparência: Dados sobre operações policiais, mortes e responsabilizações são difíceis de acessar e, muitas vezes, subnotificados.

Casos emblemáticos, como a morte de João Pedro (14 anos, baleado dentro de casa durante operação policial no Rio de Janeiro) ou de Genivaldo de Jesus (morto asfixiado em uma viatura da PRF), escancaram essa realidade. Mesmo com forte repercussão pública, as punições são lentas, quando existem.

O Impacto Social

A violência policial e a impunidade agravam o sentimento de desamparo e insegurança em comunidades negras e periféricas. Elas fortalecem uma lógica de “inimigo interno”, onde certos corpos são vistos como descartáveis pelo Estado.

Além disso, a exposição constante à violência gera traumas profundos, prejudica o desenvolvimento comunitário, aumenta a desconfiança nas instituições e perpetua ciclos de exclusão e marginalização.

Caminhos Possíveis

Embora o cenário seja grave, há movimentos de resistência e luta por justiça em todo o país. Organizações como a Coalizão Negra por Direitos, a Rede de Observatórios da Segurança e o Movimento Mães de Maio têm desempenhado um papel essencial na denúncia e no combate à violência racial.

Entre as medidas urgentes que poderiam ser adotadas, destacam-se:

  • Controle externo efetivo da atividade policial: A atuação do Ministério Público e de corregedorias independentes precisa ser fortalecida.
  • Desmilitarização da polícia: Para romper a lógica de guerra interna que rege o policiamento em áreas pobres e negras.
  • Formação antirracista para agentes de segurança: Treinamentos que enfrentem o viés racial no policiamento.
  • Reparação histórica e políticas afirmativas: Ações que combatam as raízes do racismo estrutural.
  • Garantia de transparência: Divulgação de dados abertos sobre operações policiais, mortes e investigações.

Conclusão

O racismo no Brasil é uma ferida aberta, e a violência policial impune é uma de suas manifestações mais brutais. Reconhecer esse problema é o primeiro passo para enfrentá-lo. É preciso romper o silêncio, responsabilizar agressores e transformar estruturas. A luta contra o racismo e a impunidade policial é, acima de tudo, uma luta pela dignidade humana, pela democracia e pela vida.